20 de fevereiro de 2014




Cartas não recebidas por um escritor

Caro colega que me escuta, escrevo-lhe estas linhas de fim de tarde embrulhado e cinzenta, quanto o baloiçar e as cores das minhas ideias que se agitam sem parar no interior do meu cérebro. Se a arte de escrever já é em si, entre outras frentes, um acto recriminatório do que vemos em redor, pior ficamos quando esse redor, esmaga o que escrevemos, suplantando a crueldade dos factos.
O fogo, descoberto pelo homem para usufruto, também se torna seu inimigo quando se revolta. Como todas as forças da natureza se disponibilizaram para servir a inteligência e aperfeiçoar os meios sociais, tal como o fogo cerebral, quando se descuram as formas de ser ateado e usado, podem destroçar o que produzimos, bem como a harmonia e justiça da sociedade.
Ardeu uma casa pobre entre as muitas outras ao lado. Levam décadas de existência como alojamento provisório, tal como as ideias que projectamos para um novo trabalho literário que deixamos em suspenso para novas oportunidades de intervenção. Uma casa ardida sem remédio, apenas tirou uma árvore da floresta descuidada e exposta à incúria e a novos incidentes. Os seus ocupantes e os seus andrajos foram alvo do mediatismo fotográfico e das habituais rábulas jornalísticas de ocasião, que fazem o ladrão manter-se de pé. Ficou o espaço limpo da casa e ficou o extenso ramalhete contíguo da penúria que oferece os mesmos riscos de incêndio fortuito. As ideias que armazenámos, ainda que ardam enquanto permanecem no quintal reservado nos vários sótãos do cérebro, não têm o efeito de calamidade pessoal e, muito menos, colectiva.
Os homens e mulheres que se escondem nos cargos políticos, fizeram opções de interrupção ou de início de carreira, embalados numa escola de valores que lhes dava garantias de uma supremacia social com todos os reflexos radiantes de uma carteira mais avolumada e sustentável na consistência do Estado e da protecção que este reserva aos seus eleitos acobertados nos supermercados partidários.
Nós, caro colega, julgando que pensa como eu, os que incendiamos a alma e queimamos muitas energias para levar mensagens, vemo-nos desprovidos do respeito e implementada de forma ardilosa, a desvalorização do nosso trabalho. O fogo da ignorância política avançou avassaladoramente sobre o papel dos livros, queimando até as necessárias bibliotecas como pilares da transmissão de conhecimentos às gerações. Um livro deixou de ser uma necessidade estrutural - uma semente - e, as bibliotecas ficaram reféns das disponibilidades financeiras dos decisores, que o foram espalhar em inaugurações de valor pouco acrescentado e memorial.
Ardeu uma casa, o presidente sabe que não escapa à ocorrência e age mais por obrigação e oportunismo social de notícia para o futuro, do que pela satisfação de uma família que já desesperava. Cortada a árvore, manteve-se a floresta de desespero, de lixo e escândalo. A limpeza ficou por fazer sem prazos. O mediatismo teve os seus elogios localizados, dos mesmos que silenciam a morte dos livros e da sua relevância histórica.
Se a desgraça de uns pode ter alcance, um livro pode desestabilizar esse alcance. Daí o temor! Caro colega, que espero ainda aí esteja a escutar-me, a baixeza de certos homens e mulheres que cavalgam as coisas públicas e se vangloriam de ser diferentes porque eleitos, contraria as páginas das suas afirmações e o quadro das acções que, na maior parte das vezes são arte mal desenhada, planeada e acabada, como, não raras vezes, insustentada. A nós, que apenas temos vontade, ideias amadurecidas e caneta para as tornar também públicas, resta-nos porfiar que no amanhã, os poucos leitores que se aproximam, porque a maioria é assim afastada, aumentem a coragem de atear o fogo que limpará os campos de uma Cultura florescente ao serviço de todos.
Despeço-me da sua ausência, pensando em nova oportunidade de lhe escrever.

Faro, 20 de Fevereiro de 2014
Luís Alexandre    

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