Cartas não
recebidas por um escritor
Caro colega que me escuta,
escrevo-lhe estas linhas de fim de tarde embrulhado e cinzenta, quanto o baloiçar
e as cores das minhas ideias que se agitam sem parar no interior do meu
cérebro. Se a arte de escrever já é em si, entre outras frentes, um acto
recriminatório do que vemos em redor, pior ficamos quando esse redor, esmaga o
que escrevemos, suplantando a crueldade dos factos.
O fogo, descoberto pelo homem para
usufruto, também se torna seu inimigo quando se revolta. Como todas as forças
da natureza se disponibilizaram para servir a inteligência e aperfeiçoar os
meios sociais, tal como o fogo cerebral, quando se descuram as formas de ser
ateado e usado, podem destroçar o que produzimos, bem como a harmonia e justiça
da sociedade.
Ardeu uma casa pobre entre as
muitas outras ao lado. Levam décadas de existência como alojamento provisório,
tal como as ideias que projectamos para um novo trabalho literário que deixamos
em suspenso para novas oportunidades de intervenção. Uma casa ardida sem
remédio, apenas tirou uma árvore da floresta descuidada e exposta à incúria e a
novos incidentes. Os seus ocupantes e os seus andrajos foram alvo do mediatismo
fotográfico e das habituais rábulas jornalísticas de ocasião, que fazem o ladrão
manter-se de pé. Ficou o espaço limpo da casa e ficou o extenso ramalhete contíguo
da penúria que oferece os mesmos riscos de incêndio fortuito. As ideias que
armazenámos, ainda que ardam enquanto permanecem no quintal reservado nos
vários sótãos do cérebro, não têm o efeito de calamidade pessoal e, muito
menos, colectiva.
Os homens e mulheres que se escondem
nos cargos políticos, fizeram opções de interrupção ou de início de carreira,
embalados numa escola de valores que lhes dava garantias de uma supremacia
social com todos os reflexos radiantes de uma carteira mais avolumada e
sustentável na consistência do Estado e da protecção que este reserva aos seus
eleitos acobertados nos supermercados partidários.
Nós, caro colega, julgando que
pensa como eu, os que incendiamos a alma e queimamos muitas energias para levar
mensagens, vemo-nos desprovidos do respeito e implementada de forma ardilosa, a
desvalorização do nosso trabalho. O fogo da ignorância política avançou
avassaladoramente sobre o papel dos livros, queimando até as necessárias
bibliotecas como pilares da transmissão de conhecimentos às gerações. Um livro
deixou de ser uma necessidade estrutural - uma semente - e, as bibliotecas
ficaram reféns das disponibilidades financeiras dos decisores, que o foram
espalhar em inaugurações de valor pouco acrescentado e memorial.
Ardeu uma casa, o presidente sabe
que não escapa à ocorrência e age mais por obrigação e oportunismo social de
notícia para o futuro, do que pela satisfação de uma família que já
desesperava. Cortada a árvore, manteve-se a floresta de desespero, de lixo e escândalo.
A limpeza ficou por fazer sem prazos. O mediatismo teve os seus elogios
localizados, dos mesmos que silenciam a morte dos livros e da sua relevância
histórica.
Se a desgraça de uns pode ter
alcance, um livro pode desestabilizar esse alcance. Daí o temor! Caro colega,
que espero ainda aí esteja a escutar-me, a baixeza de certos homens e mulheres
que cavalgam as coisas públicas e se vangloriam de ser diferentes porque eleitos,
contraria as páginas das suas afirmações e o quadro das acções que, na maior parte
das vezes são arte mal desenhada, planeada e acabada, como, não raras vezes, insustentada.
A nós, que apenas temos vontade, ideias amadurecidas e caneta para as tornar
também públicas, resta-nos porfiar que no amanhã, os poucos leitores que se
aproximam, porque a maioria é assim afastada, aumentem a coragem de atear o
fogo que limpará os campos de uma Cultura florescente ao serviço de todos.
Despeço-me da sua ausência, pensando
em nova oportunidade de lhe escrever.
Faro, 20 de Fevereiro de 2014
Luís Alexandre
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